Joaquim Luiz Nogueira
Artigo Nº 2 - A construção do indivíduo pelo símbolo na teoria de Mircea Eliade
O Símbolo Como
liberdade que Cria e Potencializa a Realidade
A
construção do indivíduo a partir de símbolos é capaz de oferecer ao sujeito, não
só o rumo das coisas, mas o sentido, o interesse, a conexão com a continuidade
daquela força que nos puxa em sua direção. Mircea Eliade nos fala que “[...] diante
das imagens e dos símbolos que no mundo exótico, tomam o lugar dos nossos
conceitos ou que os vinculam e prolongam [...]” (MIRCEA, 1991, p.6).
Essa
força que se irradia a partir de um símbolo faz transbordar no corpo humano
certo elemento de potência, cuja origem é imaterial, porem compreendida pela
mente como imagem, mito, comando, inspiração, criatividade ou sabedoria:
“Melhor ainda, começamos
a compreender hoje algo que no século XIX, não podia nem mesmo pressentir: que
o símbolo, o mito, as imagens pertencem a substância da vida espiritual, que
podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mais que jamais poderemos
extirpá-los” (MIRCEA, 1991, p.7).
O
corpo humano é visto como algo que foi fundido com outra substância, espécie de
união que lhe é preexistente, mas uma vez corporificada nele, esta constituição
passa a comandar o indivíduo com um entusiasmo muito mais abrangente do que sua
limitada estrutura física de carne e osso.
Quando
o corpo se encontra na fase infantil, as junções entre o elemento herdado e a
mente deixam transparecer esta outra dimensão na forma daquilo que denominamos
como inocência. Fase em que os horizontes não possuem limites, pois o
pensamento infantil é simbólico, porém, ele também se apresenta-se no adulto.
“O pensamento simbólico
não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é
consubstancial ao ser humano, precede a linguagem, e a razão discursiva. O
símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos - que desafiam qualquer outro meio de
conhecimento” (MIRCEA, 1991, p.8).
A
leitura que cada ser humano faz do mundo, assim como, as devidas ações
desencadeadas por ela frente às interpretações de contextos, situações, imagens,
mitos e símbolos, todas têm a possibilidade de satisfazer a uma primordialidade,
que lhe é necessária e inevitável. São essas visões do sujeito que manifestam
outras variantes que lhe incorpora: “As imagens, os símbolos e os mitos não são
criações irresponsáveis da psique, elas respondem a uma necessidade e preenchem
uma função; revelar as mais secretas modalidades do ser” (MIRCEA, 1991, p.8-9).
As
imagens simbólicas são elementos ajustáveis, as mentes humanas as usam como
mecanismos que ajudam na sintonia com aquilo que realmente lhe interessa, já
que a realidade manifestada diante do indivíduo carrega muitos antagonismos,
logo, uma imagem resposta surge em sua mente.
“As imagens são
multivalentes. Se o espirito utiliza as imagens para captar a realidade
profunda das coisas, é exatamente o porquê essa realidade se manifesta de
maneira contraditória, e consequentemente não poderia ser expressada por
conceitos” (MIRCEA, 1991, p.11).
Essas
representações que surgem na psique humana imploram pela necessidade de suprir
um vazio ou uma lacuna de um tempo já decorrido, no qual foi lhe negado outras
possibilidades naquele momento, mas agora, a imagem mental lhe apresenta como o
sujeito poderia ter agido e acrescenta novas expectativas para sanar a falha
junto ao tempo presente.
“Constataremos que essas
imagens invocam a nostalgia de um passado mitificado, transformado em
arquétipo, que esse “passado” contém, além da saudade de um tempo que acabou,
mil outros sentidos: ele expressa tudo o que poderia ter sido, mas não foi” (MIRCEA, 1991,
p.13).
Toda
busca pessoal significa certa proximidade com os símbolos que lhe transporta
até outras dimensões do tempo, lá é desperto sua obrigação frente à realidade da
existência. Eliade chama isso de situação extrema, responsável pelo tipo de
participação que temos no cotidiano.
“Os símbolos, os mitos e
os ritos revelam sempre uma situação-limite do homem, e não apenas uma situação
histórica. Por situação-limite entendemos aquela que o homem descobre como
tomando a consciência do seu lugar no Universo” (MIRCEA, 1991, p.30).
É
neste momento que o indivíduo consegue superar sua condição como ser histórico,
isto é, no sentido de uma atuação junto à realidade, ele fixa sua vontade de
renascer novamente objetivando a realização de seus ideais, aqueles que o
levará para sua plenitude enquanto ser ilimitado. “A medida que o homem
transcende o seu momento histórico e dá livre curso ao seu desejo de reviver os
arquétipos, ele se realiza como ser integral, universal” (MIRCEA, 1991,
p.32).
Os
textos sagrados da Antiguidade mencionavam algumas imagens que significavam
essa passagem de homem histórico para um ser universal. Esses portais eram
representados por escadas ou flutuações que simbolizavam o acesso a esta outra
dimensão, veja nas palavras de Eliade: “A escalada ou ascensão denota o caminho
rumo a realidade absoluta (MIRCEA, 1991, p.47).
O
indivíduo busca constantemente um estado que se encontra além de sua posição
realista, ou seja, do sentimento de aprisionamento, cujo limite é denominado
como corpo e a libertação dessa cadeia passa por grandes desafios guiados pela
ideia de recuperação de algo perdido.
“Compreendemos por isso
o desejo de se encontrar sempre e sem esforço no Centro do Mundo, no coração da
realidade, e, enfim, de ultrapassar de uma maneira natural a condição humana e
de reencontrar a condição divina. Um cristão diria a condição anterior a queda” (MIRCEA, 1991, p.51).
Este
elo extraviado do indivíduo, mesmo que não faça parte fisicamente de sua
realidade é capaz de retirá-lo de seu tempo, de sua agonia e projetá-lo de
forma simbólica para o lugar conhecido como o centro que lhe direciona. É desta
dimensão magnífica, cujo acesso se dá apenas pelo símbolo, elemento responsável
pela abertura entre o mundo corpóreo e o universo sem limites.
É
uma conexão conhecida pelo indivíduo como sensação prazerosa, capaz de liga-lo
com forças misteriosas, fios invisíveis, mas suficientes para trazer emoções
únicas a cada pessoa. Tal junção forma a metáfora, que conhecemos como vida.
“Contentemo-nos em
lembrar que um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo
individual, cronológico, “histórico” – e o projeta, pelo menos simbolicamente,
no Grande Tempo, um instante paradoxal que não pode ser medido por não ser
constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma ruptura do
Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo,
para o Tempo Sagrado” (MIRCEA, 1991,
p.54).
Uma
possível linha de interpretação nos leva a conclusão do quanto cada indivíduo é
desconhecedor daquilo que movimenta seu corpo rumo ao dia seguinte. Neste
aspecto, duas coisas são importantes; a representação pessoal e a circunstância
em que se encontra naquele momento, que juntas, definem o que o sujeito
significa para si mesmo. E deste modo, outra maneira de fugir desta condição de
ignorância humana, seria o indivíduo não se identificar com a representação do
que cada um pensa ser ou desejaria tornar-se, com base ao que imagina como seu ideal.
“Em outros termos,
ultrapassamos a condição temporal e a obtusa suficiência, que são o fardo de
todo ser humano, pelo simples fato de ele ser “ignorante”, ou seja, de
identificar a si e ao Real com a sua própria situação particular. Pois a
ignorância está em primeiro lugar nesta falsa identificação do Real com o que
cada um de nós parece ser ou parece possuir” (MIRCEA, 1991, p.55).
Este
pequeno controle do indivíduo sobre seu mundo de representações, acaba por
fugir de seu comando na maioria das vezes, nesse momento de confusão e
desespero, aparece a entoação de símbolos, linguagem com a capacidade de lançar
o sujeito para outra dimensão, cuja sintonia, provoca nele efeitos emocionais. Dessa
forma a pessoa se reconhece como ser limitado, admite não possuir o poder para
criar mundos perfeitos, pois não controla sua própria existência, porém, neste
estágio se abre uma porta para possibilidades infinitas, desde que ele
acredite.
“A recitação periódica
dos mitos derruba os muros construídos pelas ilusões da existência profana. O
mito reatualiza continuamente o Grande Tempo e dessa forma projeta quem o ouve
a um plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras coisas, proporciona
a abordagem de uma Realidade impossível de ser alcançada no plano da existência
individual profana” (MIRCEA, 1991, p.56).
Acreditar
numa outra existência extra corpo é superar os limites desta realidade mundana,
é a projeção de todas as ações do indivíduo para um plano que possa mostrar aos
outros, numa linguagem simbólica e metafórica, a grandeza infinita de algo que
sua mente não consegue compreender totalmente. Essa conexão, uma vez ligada a pessoa,
cria possibilidades para que o mesmo se comunique por meio de linguagens
simbólicas, modificando a leitura que tem do mundo e suas ações.
“Transcender o tempo
profano, reencontrar o Grande Tempo mítico, equivale a uma revelação da
realidade última. Realidade estritamente metafísica, que não pode ser abordada
de outra maneira senão através dos mitos e símbolos” (MIRCEA, 1991,
p.56).
Uma
das palavras mais simbólicas que pode ser exemplo de metáfora para o ser humano
é a liberdade. Este vocábulo possui inúmeros sentido, cujas variações dependem
do contexto, contudo na maioria das vezes em que é mencionado, tem a capacidade
de desligar o indivíduo de sua rotina. “O homem só pode se desprender através
de um ato de liberdade espiritual” (MIRCEA, 1991, p.62)
Entre
os adeptos do Budismo, a libertação do tempo que nos aprisiona ocorre com a
revogação da existência, isto é, o indivíduo deve deslocar-se de seu corpo: “A
única possibilidade de sair do tempo, de quebrar o círculo de ferro das
existências é abolição da condição humana” (MIRCEA, 1991, p.63).
Outra
forma de alforria seria pelo conhecimento, - entendimento de uma dada situação
ou fato. A clareza com que um indivíduo consegue perceber uma circunstância e
acreditar na sua convicção o faz sair da existência demarcada. “A iluminação, a
compreensão, realiza o milagre da saída do Tempo” (MIRCEA, 1991, p.72). Esta
ponte capaz de conectar o indivíduo com outra dimensão fora de seu período pode
ser denominada de “fé”, crença inabalável em algo. Se o sujeito realmente
acreditar, sua certeza o transportará em segurança até aquele lugar desejado. A
convicção é o ponto de descontinuidade com a realidade angustiante, estabelecendo
a confiança necessária para manter a pessoa em outro espaço.
“Um “Centro” representa
um ponto ideal, pertencente não a um espaço profano, geométrico, mas ao espaço
sagrado, e no qual se pode realizar a comunicação com o Céu ou o Inferno; em
outros termos, um “Centro” é o lugar paradoxal da ruptura dos níveis, o ponto
em que o mundo sensível pode ser ultrapassado. Mas pelo fato de transcender o
Universo, o mundo criado, transcende-se o tempo, a duração, e obtém–se a
estase, o eterno presente intemporal” (MIRCEA, 1991, p.72).
Os
símbolos traduzem um estado de equilíbrio, capaz de falar com cada sujeito de
maneira diferente, pois podem se conectar de acordo com as experiências e o
grau de interpretação de cada ser humano. Diante de uma imagem simbólica,
alguns podem viajar para fora do tempo, enquanto outros, simplesmente parecem
ignorar sua presença.
Segundo
Eliade, o símbolo pode representar “O presente total, o eterno presente dos
místicos, é a estase, a não-duração. Traduzida ao simbolismo espacial, a
não-duração, o eterno presente é a imobilidade” (MIRCEA, 1991, p.78).
O
indivíduo vive na fronteira de seu corpo limitador, sonha com o universo
ilimitado que se encontra fora de seu alcance. É neste campo infinito que ele:
navega, voa, viaja, pesquisa, projeta e idealiza aquilo que estabelece como
modo de viver.
ELIADE,
Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico e religioso. Trad.
Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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