Artigo Nº 4- série "A construção do Indivíduo pelo Símbolo" Teoria de Slavoj Zizek
Joaquim Luiz Nogueira
O Elemento Mediador Simbólico na Formação do Indivíduo
(...)
habitamos a ordem simbólica apenas na medida em que cada presença surge contra
o pano de fundo de sua possível ausência[1]
Existe
certa autorização sustentadora no indivíduo que funciona em tempo real, isto é,
como já nos referimos anteriormente no capítulo 3, ela é uma espécie de “F5” muito
usado nos programas de computadores para fazer atualizações. Trata-se de um
tipo de sintonia com o ambiente ou contexto, cujas funções simultâneas são:
construções e intervenções no sujeito.
Esta
atuação se mostra a partir do relato da pessoa, principalmente nos argumentos
expressados, que tendem para uma defesa heroica ou imaginária do fato ocorrido
em tempo real. A interpretação do caso se processa de forma um pouco
fantasmagórica, numa tentativa de se proteger da realidade e lutar contra o
elemento gerador. “Á ordem estrutural sincrônica é um tipo de formador de
defesa contra seu Acontecimento fundador que só pode ser discernido na forma de
uma narrativa mítica espectral” (ZIZEK, 2015, p.97).
A
explanação do acontecido que ocorre no sentido da inventividade do indivíduo se
movimenta em oposição à tentativa de atualização ou construção da pessoa pela
projeção espectral. “(...) a própria narrativa desse Acontecimento não é nada
além de uma fantasia para resolver o antagonismo/inconsistência debilitante da
Ordem sincrônica /estruturadora” (ZIZEK, 2015, p.97).
O
mecanismo que ampara o sujeito em sua renovação, e que, para se conservar de
forma atuante, ele não deve estar no mesmo grau, ou seja, deve estar fora do
sujeito, pois, “a irreconhecível história fantasmática, (espectral), que
sustenta efetivamente a tradição simbólica explicita, mas que, para ser
operante, tem de permanecer forcluída” ZIZEK, 2015, p.73-74).
E
neste sentido, o fato que provoca angustia no indivíduo, também não oferece
condição para acomodar definitivamente a inovação trazida pela narração
fantasmagórica, mesmo que tenha tido progresso, não se pode registrar a
permanência naquele lugar, cuja projeção foi a responsável pela mediação de
acordo com Zizek: “a história espectral fantasmática de um evento traumático
que “continua a não ter lugar”, que não pode ser inscrito no próprio espaço simbólico
criado por sua intervenção” (ZIZEK, 2015, p.74).
Mesmo
que o relato fantasmagórico não consiga se efetivar no indivíduo, ele continua
a equilibrar o sujeito de forma simbólica, isto é, sua aparência gera imagens e
ideias que propiciam avanços: “sua presença espectral sustenta a tradição
simbólica explicita” (ZIZEK, 2015 p.74).
O
elemento mediador do indivíduo que Slavoj Zizek chama de espectro, no limite
que não permanece integrado ao sujeito, ele se apresenta como uma visão eterna,
que mesmo não agregado à pessoa, continua a intervir na realidade “na medida em
que permanece não integrado ou excluído, continua a assombrar a história “real”
como sua Outra Cena espectral” (ZIZEK, 2015 p. 74).
Na
medida em que aquilo que possui a capacidade da imortalidade, isto é, uma
ficção que também argumenta sobre a realidade e pode modificar os resultados,
cujos elementos desencadeadores fantasmagóricos, não possuem uma explicação que
possa ser dada como resultado ou consequências de atos anteriores, segundo
afirma Zizek mencionando Kant e Schelling:
Com
respeito a noção de tempo como real, isso significa que existe um ato autêntico
entre tempo e eternidade. Por um lado, um ato é como afirmaram Kant e Schelling, o ponto em que a
“eternidade intervém no tempo”, em que o encadeamento da sucessão causal
temporal é interrompido, em que “alguma coisa surge-intervém do nada”, em que
algo acontece e nada pode ser explicado como resultado ou consequência da
cadeia antecedente (ZIZEK, 2015, p.98)
Neste
caso, a postura, conduta ou atitude de um indivíduo se traduz como sinal de uma
intervenção, cuja origem, também pode ser interpretada como uma abertura ou
ponte, que permite a mediação de algo que é permanente: “Em suma o ato
propriamente dito é o paradoxo do gesto atemporal/”eterno” de superar a
eternidade, abrindo a dimensão da temporalidade/historicidade”. (ZIZEK, 2015
p.98).
Para
entendermos a noção de tempo no ser humano, temos que ver o seu registro como
uma espécie de represamento ou fotografia da retina, armazenada via memória.
Estas se transformam em cenários ou perspectivas que se fixam como pontos
objetivos ou lembranças vinculadas a seus contextos geradores.
E
esses pequenos recortes que chamamos de cenários não possuem mais uma ligação
direta com sua origem permanente, cuja atuação deste elemento externo
instaurador e sua designação, podem ser denominadas, segundo Ernesto Laclau,
como antagonismo, isto é, adversidade. Para Judth Butler, trata-se de um apego
apaixonado:
Para
entender esse ponto crucial, precisamos ter em mente que não existe “tempo como
tal”, existem apenas horizontes concretos de temporalidade/historicidade, e
cada horizonte é fundamentado em um ato primordial de forclusão, de “repressão”
de seu próprio gesto fundador. Segundo os termos de Ernesto Laclau, o
antagonismo é esse ponto da “eternidade” da constelação social definido por seu
antagonismo, o ponto de referência que gera o processo histórico (...) Nos
termos de Judith Butler, o “apego apaixonado”, talvez seja um candidato a essa
“eternidade”. (ZIZEK, 2015, p.98).
Para
Slavoj Zizek, trata-se de uma “constelação libidinal primordialmente
reprimida/renegada que não é simplesmente histórico – temporal, pois sua
própria regressão gera e sustenta os múltiplos modos de historização” (ZIZEK,
2015, p.98). Esta ideia de construção do indivíduo pela libido já foi amplamente discutida com Jung no capítulo
anterior, no momento, vamos apenas refletir sobre as denominações de
antagonismo e apego apaixonado como elementos mediadores na formação do
sujeito.
Costumamos
dizer que o cheiro de um café ao ser passado pelo coador desperta nas pessoas a
irresistível vontade de tomar a bebida, que uma vez experimentada, pode ter a
sensação de que a fragrância sentida anteriormente era melhor do que o líquido
ingerido. Digamos que o mesmo acontece com a véspera de um acontecimento
festivo, quando os sentimentos de expectativa são muito mais vigorantes, quando
comparados com aqueles que ocorrem no evento.
Percebemos
que há certo antagonismo entre o fato real e a expectativa anterior nos dois
casos acima, sendo que, esta última, a situação de espera, conserva em si uma
visão integradora, isto é, ela é carregada de possibilidades. Enquanto que a
materialidade em si do café ou do evento, congrega a adversidade de elementos
divergentes, portanto, a oportunidade da bebida e do acontecimento festivo se
repetir está na evocação do aroma e na expectação que antecede cada evento
importante para o indivíduo.
Neste
aspecto, podemos dizer que certos aromas ou situações de espera, geram
arrebatamentos exaltados que podem desencadear no indivíduo uma variedade de
sentimentos, entre eles, carinho, afeto, amor, amizade, benevolência, simpatia
e ternura. De outro lado, também provocam ciúme, avareza, desejo, fixação; etc.
E
estes elementos acima são responsáveis pela mediação na formação do sujeito,
mesmo que não integrem o corpo do indivíduo, eles participam por meio de
intervenções, arbitrando decisões na medida em que surgem de forma planejada ou
inesperada para a pessoa.
No
entanto, o resultado do encontro entre a realidade, isto é, o fato concreto em
si e a parte invisível, imaginada, fantasmática, sendo que, esta última,
termina por direcionar as ações do indivíduo segundo Zizek: “A lição disso tudo
é que, na oposição entre fantasia e realidade, o Real está do lado da fantasia”
(ZIZEK, 2015, p.76).
O
elemento mediador e ausente no indivíduo se conserva fora do contexto de tempo,
mas se antecipa ao se representar como fator motivador de um fato ou evento.
Ele se torna a fonte originadora que apoia e facilita a abertura para diversas
tentativas do sujeito na busca da realização de objetivos frustrados
anteriormente:
A
“eternidade” não é atemporal no simples sentido de persistir para além do
tempo, ela é, antes, o nome do Acontecimento ou do Corte que sustenta, que abre
a dimensão da temporalidade como a série ou sucessão de tentativas fracassadas
de aprendê-la (ZIZEK, 2015, p. 99).
O
Psicanalista Slavoj Zizek chama os diversos insucessos de um indivíduo de
traumas, experiências emocionais desagradáveis, que para ele, funciona também
como algo eterno, já que o sujeito não consegue deter isto só no passado, pois
o tempo da pessoa começa a girar em torno daquela comoção, na qual, a partir de
abundantes formas, busca se conectar ao acontecido:
O nome
que a psicanálise dá a esse Acontecimento/Corte é 0bviamente, trauma. O trauma
é “eterno”, nunca pode ser propriamente temporalizado ou historicizado, é o
ponto da “eternidade” em volta do qual o tempo circula – ou seja, é um
Acontecimento accessível no tempo somente por meio de seus múltiplos traços.
(ZIZEK, 2015, p.100).
É
a incapacidade da mente do indivíduo em compreender o trauma que o sustenta. Se
ele conseguir neutralizar este impacto, livrar-se desta perturbação, o
resultado seria uma vivência do momento infinito, sem preocupação com o tempo:
Não
existe tempo sem eternidade; a temporalidade é sustentada por nossa
incapacidade de apreender/simbolizar/historicizar o trauma “eterno”. Se o
trauma fosse temporalizado/historicizado de maneira bem sucedida, a própria
dimensão do tempo implodiria/colapsaria em um Agora eterno e atemporal. (ZIZEK,
2015, p.100).
A
historicidade de um indivíduo é sustentada porque ele tende a ser orientando
pelos seus pontos traumáticos. O sujeito não consegue se romper deste círculo,
assim, o momento perene “a Eternidade (...) é excluída para que a realidade
histórica possa manter sua consistência” (ZIZEK, 2015, p.100).
Do
ponto de vista do cristianismo, o indivíduo é orientado para apontar o
sentimento do amor, que também se trata de um elemento passageiro e limitado
pela morte do corpo, porém, provoca um fascínio e este evoca algo que vai muito
além de qualquer materialidade. “No amor, nós escolhemos um objeto temporal
finito que “significa mais do que qualquer outra coisa” e nos concentramos
nele” (ZIZEK, 2015, p.100).
A
escolha do indivíduo pela orientação advinda do eterno mereceu atenção de Immanuel
Kant, citado por Zizek, ele enfatizou a qualidade perene da pessoa, mesmo antes
da realidade terrena, ou seja, aquela que determina previamente via destinação,
a sina do sujeito.
O último
Kant articulou a noção do ato nominal da escolha por meio do qual um indivíduo
escolhe esse caráter eterno e, por isso, antes de sua existência temporal,
delineia de antemão os contornos de seu destino na terra. (ZIZEK, 2015, p.100).
Desse
modo, a libertação do indivíduo tem um grande progresso com o cristianismo,
pois, novamente ocorre a transformação legítima e o sujeito pode se reinventar
(arrepender ou perdoar) e outra vez sem perder o foco na eternidade.
Sem o ato
divino da Graça, nosso destino permaneceria imóvel, para sempre fixado por esse
eterno ato de escolha; a “boa nova” do cristianismo, no entanto, é que, em uma
Conversão genuína, o sujeito pode “recriar-se”, ou seja, repetir esse ato e,
assim, mudar e (desfazer os efeitos da) própria eternidade. (ZIZEK, 2015,
p.100).
Outra
inovação cristã está na transformação da via do amor, pois com este sentimento
que existe no tempo transitório humano, temos uma ampliação da projeção entre o
indivíduo e o seu semelhante, cujo altruísmo do sujeito pode desencadear uma
espécie de transferência no sentido do objeto venerado, enquanto manter sua
união com o mesmo. “No amor, nós escolhemos um objeto temporal finito que
“significa mais do que qualquer outra coisa” e nos concentramos nele”. (ZIZEK,
2015, p.100).
Do
ponto de vista oposto, a pessoa também pode se agarrar ao fato em que se
acredita como original, por exemplo, seguir sua destinação, missão ou desígnio.
Neste sentido, pode se suportar sofrimento e perseverar, pois a energia é
vigorada com a presença do acontecimento primordial. Slavoj Zizek cita o povo
judeu como amostra de uma conduta não simbolizada:
O
paradoxo do Judaísmo é que ele se mantém fiel ao Acontecimento fundador
violento precisamente por não o confessar nem o simbolizar: esse status
“reprimido” do Acontecimento é o que dá ao judaísmo sua vitalidade ímpar; foi o
que permitiu que os judeus persistissem e sobrevivessem durante milhares de
anos sem terra ou tradição institucional comum. (ZIZEK, 2015, p.101).
Esta
saída do indivíduo, no qual ele não permite revelar seu sentimento, ou seja,
desde que nasce, incorpora uma verdade eterna e a segue fielmente, porém, esta
se contrasta com a ação de se simbolizar. Nesta segunda opção, o sujeito
confesso de suas fragilidades ou erro, passa ter a opção de escolha para
continuar rumo ao seu objetivo.
Neste
sentido, o indivíduo pode confessar seus erros e começar novamente de forma
diferente sob a luz de outras possibilidades, num primeiro momento, parece como
solução imediata, porém, o psicanalista Slavoj Zizek nos diz que o sujeito
continua permanentemente aterrorizado por uma espécie de resíduo, que sobrevive
ao ato revelador da pessoa.
(....)
devemos chegar a conclusão inevitável que a psicanálise, longe de ser um modo
confessional de discurso, implica a aceitação e a admissão de que todas as
formações são para sempre assombradas por algum “resto indivisível”, uma
“sobra” espectral traumática que resiste à “confissão”, ou seja, à integração
no universo simbólico. (ZIZEK, 2015, p.101).
O
elemento que resiste no indivíduo, mesmo depois que o sujeito se arrepende ou
confessa seus erros, e que, segundo Freud se chama trauma, isto é, um fantasma
que se torna o responsável pela manifestação que caracteriza a pessoa. É com
esse ingrediente invisível, ausente, que Zizek afirma o complemento do ser
humano.
Obviamente,
o nome freudiano para esse resto “não-morto” é, repetimos, trauma – é a
referência implícita a algum núcleo traumático que persiste como resto
“não-morto” obsceno/monstruoso, que mantém “vivo” um universo discursivo – isto
é, não existe vida sem o suplemento da persistência espectral obscena - não –
morta do “morto vivo”. (ZIZEK, 2015, p.101).
Portanto,
aqui vemos que o elemento mediador no indivíduo, sendo ausente, não pode ser
controlado pela vontade do sujeito, pois se encontra em outra perspectiva, com
outra visão e esta não permite a ampla liberdade do sujeito: “A aceitação do
fato de que nossa vida envolve um núcleo traumático por trás da redenção, que
existe uma dimensão de nosso ser que resiste para sempre à redenção e à
libertação” (ZIZEK, 2015, p.101).
O
ser humano como alguma coisa que se divide entre dois opostos, de um lado, é
destituído, inexistente ou vazio. Já seu oposto pode ser uma completude
preenchida por sua genuinidade, que se satisfaz via representações e imagens.
Para ilustrar esta ideia, Zizek cita Hegel, pois ele compara o homem à
escuridão da noite, isto é, um nada que contém um tudo:
O ser
humano é esta noite, este nada vazio, que contém tudo em sua simplicidade - uma
riqueza infindável de muitas representações, imagens, das quais nenhuma lhe
pertence ou não estão presentes. (HEGEL in ZIZEK, 2015, p.104).
Ao
nos sentirmos como nada, uma espécie de pessimismo e sentimento de inutilidade
se mostra como horizonte. É neste espaço entre o vazio e a negatividade, que a
inventividade humana trabalha como mediadora, isto é, ela busca imagens,
lembranças, desejos, sonhos e os apresentam de forma brilhante ou podemos dizer
também, em aspecto simbólico, é algo capaz de insculpir no indivíduo novas ações,
mesmo que impossíveis de serem realizadas.
Em uma
aparência sublime, o conteúdo imaginário positivo é um substituto do Além
“impossível” (...) Em suma, no momento em que entramos na dimensão da aparência
simbólica, o conteúdo imaginário é aprisionado/inscrito numa dialética entre o
vazio e a negatividade (ZIZEK, 2015, p.106).
A
qualificação da formação do indivíduo via elementos mediadores, tais como:
traumas, imagens positivas, sublimes, simbólicas entre outras, dependem das
trajetórias em que o sujeito escolhe para prosseguir. Estas opções agarradas
pelo sujeito se apresentaram acompanhadas de diversas outras possibilidades de
percursos que são dificultadas ou negadas a partir da concretização de uma dada
preferência ou decisão.