Viajando no invisível
Joaquim Luiz Nogueira
Neste livro, o autor Charles Stépanoff , busca a linguagem usada pelos xamãs do norte da Ásia, que preservam costumes e rituais, cuja origem se aproxima do período paleolítico, numa tentativa de nos apresentar como estes indivíduos constroem o diálogo com o invisível. A maneira de como fazer esta comunicação com as entidades invisíveis ou espíritos, que em algumas tribos eram praticadas de forma individual e livre para todos os membros daquela localidade, em outras regiões, eram restritas somente para os profissionais reconhecidos pelo coletivo.
“Todas as sociedades têm práticas diferentes que permitem aos
indivíduos manter relacionamentos com entidades invisíveis, espíritos,
ancestrais, deuses. Em algumas práticas, cada indivíduo pode se dirigir a
espíritos e deuses diretamente, por exemplo, por meio de orações e ofertas. A
relação assim estabelecida nesta prática é didática: visa colocar um humano e
um não humano em contato direto. Em outras configurações, as pessoas confiam a
um deles a realização de certos atos e palavras” (...) Uma prática religiosa
didática se baseia no pressuposto de que certas modalidades de comunicação com
o invisível são acessíveis a todos sem um intermediário. (Voyager dans
l'invisible)
Não
havia somente a polêmica sobre quem deveria se relacionar com o invisível, se
era para todos ou apenas para um especialista, também existia uma a polêmica de
qual maneira se deveria comunicar com o invisível, para algumas tribos, a porta
se abriria pela luz, neste caso, raios de iluminação, lampejos e brilhos seriam
usados para este diálogo. De outro lado, também estavam aqueles que praticavam
este relacionamento com o invisível usando a escuridão de uma tenda ou da noite
como meio facilitador deste encontro.
...traçaremos um retrato desses dois modos de se relacionar com o
invisível que, embora se cruzem e às vezes se interpenetram, constituem dois
pólos claramente opostos. (...) Começaremos com o xamanismo hierárquico,
portador da tenda de luz, que foi o primeiro encontrado e estudado pelos
viajantes ocidentais, a seguir abordaremos o xamanismo de tenda escura
heterárquica, tão diferente do anterior que alguns observadores até se
perguntaram se o termo o xamanismo poderia ser aplicado a ele. (Voyager dans
l'invisible)
No
entanto, surge ainda entre estes povos a discussão sobre a maneira mais
adequada de como se relacionar com algo não humano: para alguns líderes, todos
os indivíduos poderiam fazer este diálogo, mesmo os mais simples, usando
ofertas, oferendas entre outras possibilidades. Outra vertente, defendia a
importância da representação, ou seja, a criação de imagens materiais, nas
quais, o invisível seria contemplado por meio da imaginação. Esta última visão
mostra como o xamã, através daquela representação se comunica com o invisível,
cujos demais não conseguem interagir. E desse modo, são criadas diversas
imagens ou “interfaces de comunicação” onde o invisível e o visível podem
encontrar, isto é, espaços sagrados.
...xamanismo hierárquico estabelece e desenvolve a possibilidade
de um modo particular de se relacionar com o mundo por meio de uma dupla
representação: representação de pessoas simples por um xamã em negociação com
os poderes não humanos do meio ambiente e a representação inversa desses
agentes na banalidade. da vida cotidiana através da proliferação de imagens
materiais. O regime de delegação hierárquica leva as pessoas simples a um modo
de atividade imaginativa cujo giro dominante é contemplativo: elas não
interagem com o invisível, mas podem imaginar como o xamã age por elas em
mundos distantes. Para que o xamã atue em nome de sua comunidade, para que a
delegação seja possível, devem ser criadas interfaces de comunicação onde os
espaços visíveis e invisíveis se encontrem e se encontrem, onde o inacessível
seja visível, não certamente em si, mas em traços palpáveis para aqueles. que
têm apenas os olhos para olhar. (Voyager dans l'invisible)
A
materialização do invisível em objetos, imagens, animais, universos distantes,
ancestrais e tambores, criou diversos elementos que se tornaram regenciais, ou
seja, apoio no qual, os indivíduos poderiam imaginar e até sentir a complexidade
daquilo em que ele não poderia ver ou tocar, porém, por meio de uma linguagem
ou imagem metafórica se daria a incorporação destes valores imaginados e
reunidos, daquilo que pertenceria ao mundo do mistério profundo, desconhecido
em sua vida cotidiana.
Os pesquisadores frequentemente notaram a diversidade de
referências semânticas das quais o tambor é o suporte. Por exemplo, para os
xamãs Evenki, o tambor é ao mesmo tempo um barco, uma rena viva e uma imagem do
universo, enquanto no Altai é referido também como um camelo, um cavalo, um
cervo, um leopardo, um ancestral e um diagrama do cosmos. Seria errado ver
nessa riqueza um acúmulo fortuito de metáforas heterogêneas herdadas ao acaso
de tradições e influências. O tambor não é múltiplo por acidente, é múltiplo
por destino. Ele encarna o que Severi chama de "identidade complexa",
ou seja, uma condensação de seres e relações que, na vida cotidiana, permanecem
incompatíveis, mas que o ritual reúne. (Voyager dans l'invisible)
Dessa maneira, uma viagem dentro do mundo invisível aos nossos olhares tem início com a criatividade imaginativa do indivíduo, capaz de criar objetos e vestimentas, os quais, propiciam para o xamã a viagem no invisível. Segundo os xamãs “Yakuts” que formam o grupo étnico dominante na República da Yakutia (Sakha), um território da Sibéria Central tão grande quanto a Índia, as performances dão origem na sua imaginação de uma legião de modelos e maneiras de como a pessoa poderá atuar na realidade e na virtualidade
...o traje pertence às tecnologias imaginativas do xamanismo
hierárquico: o essencial não é tanto o que o traje representa, mas o que
permite fazer e viver no invisível (...) em suas performances, os xamãs Yakut
mobilizaram uma série de cartilhas imaginativas que permitiam aos participantes
coordenar o espaço imediato e o espaço virtual. (Voyager dans l'invisible)
A
atuação do indivíduo, tanto na realidade, quanto na virtualidade imaginária
pode ocorrer de forma semelhante a uma participação em um jogo de gamer, cuja
pessoa assume e incorpora as vontades do personagem que mais representa seus
desejos e vontades. Por alguns instantes, o sujeito parece estar viajando no
mundo criado e projetado por ele mesmo, passa a vibrar ao ver suas regras e
imposições vencendo o jogo. Tem a mesma sensação do herói ao encontrar espaços
imaginados e até espíritos, sentimentos que também incorpora ao ver um filme ou
ler um romance, isto é, faz gestos ao pronunciar palavras como se realmente
estivessem naquele espaço imaginário ou virtual.
O jogador de videogame e o xamã têm mais em comum do que você pode
imaginar. Ao se engajar no jogo, o “gamer” passa a ser protagonista de um mundo
que tem sua geografia, história e regras; por sua vez, o xamã, ao realizar um
ritual de viagem, torna-se o herói de um épico através das montanhas e nuvens
para encontrar os espíritos. Ambos desviam a atenção do ambiente atual para
mergulhar em um universo paralelo que, distinto do espaço imediato e, no
entanto, presente, pode ser denominado espaço virtual. É certo que uma imersão
também é vivenciada pelo leitor de um romance ou pelo espectador de um filme, mas
o jogador e o xamã fazem muito mais: entram no espaço virtual, se movem ali,
fazem gestos, ali se encontram, amigos e brigam com monstros. (Voyager dans
l'invisible)
Este
pequeno lampejo que por alguns instantes parece coordenar os movimentos do indivíduo,
também pode, ao mesmo tempo, fazer parte do corpo de outras pessoas, numa
espécie de rede virtual, compartilhada em espaços diferentes e distantes,
unidos apenas pela emoção contagiante de uma imagem, símbolo ou palavra.
Eles mobilizam o que chamamos de imaginação agente e não apenas
contemplativa. Melhor, em ambos os casos uma atividade imaginativa em rede é
implantada: os jogadores de uma sala de videogame se envolvem emocionalmente
juntos em uma cena virtual e podem ser milhares para fazê-lo em "jogos
online multijogador massivo" (jogos online multijogador massivo). (Voyager
dans l'invisible)
Fonte:
Voyager dans l'invisible /Techniques
chamaniques de l'imagination
Par Charles Stépanoff / Année : 2019 Pages : 468
https://www.cairn.info/voyager-dans-l-invisible--9782359251586.htm
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