Joaquim Luiz Nogueira
Segundo
Francastel, temos no surgimento do pensamento moderno (século XVI) a “Força da
corrente Figurativa” que neste período, quando a coisa que nos encanta ou que nos
provoca certo deleite, a ponto de nos transportar mentalmente para outros
espaços imaginários, e também, capaz de reunir pessoas em espaços artificiais ao
reproduzir diversos horizontes
sentimentais, ou seja, aquilo que “(...) introduz o maravilhoso (...) ilustra
efetivamente a coabitação no mundo de um sistema de visualização tradicional e
de um sistema inédito (...) os novos horizontes sentimentais” (FRANCASTEL 1983,
p.243).
Para
ilustrar essa ideia de como o relampejo de algo que nos encanta, pode compor
novas ações por meio de um simples transporte via sentimentos, ou em alguns
momentos históricos, cujo vislumbre do maravilho, foi capaz de construir ações
na realidade de épocas históricas.
Desde
o pensamento da Antiguidade, já temos o exemplo do filósofo Sócrates (470 a.C.-
399 a.C.) com sua frase “conheça a ti mesmo” e diante das situações políticas
de sua época, ele confiou em sua tese de que, cometendo o suicídio com veneno
cicuta, poderia provar aos juízes de seu tempo que sua conduta era justa, mas
que naquele universo, não seria compreendido, então, sua postura foi confiar que
mesmo com sua morte, suas ideias continuariam a existir, provando sua vitória.
"Eu
predigo-vos portanto, a vós juízes, que me fazeis morrer, que tereis de sofrer,
logo após a minha morte, um castigo muito mais penoso, por Zeus, que aquele que
me infligis matando-me. Acabais de condenar-me na esperança de ficardes livres
de dar contas da vossas vida; ora é exatamente o contrário que vos acontecerá,
asseguro-vos (...) Pois se vós pensardes que matando as pessoas, impedireis que
vos reprovem por viverem mal, estais em erro. Esta forma de se desembaraçarem
daqueles que criticam não é nem muito eficaz nem muito honrosa[i]
Dessa
maneira, Sócrates enfrentou seus inimigos escolhendo uma alternativa inédita
para seu tempo, assim como suas ações em vida, que ensinava seu conhecimento de
graça, o que contrariava a classe política de sua época. Também dizia que para
se acreditar em algo, era preciso verificar se aquilo realmente era verdade,
logo, orientava as pessoas a fazerem perguntas e críticas, tudo o que os
políticos não queriam para o povo.
Antes
de Sócrates, Buda ou Sidarta, que nasceu em aproximadamente 566 a. C, também ao ficar indignado com
o sofrimento, a velhice, a doença e a morte, decidiu dedicar somente a vida
espiritual ao desprezar o corpo e a materialidade. Seu objetivo foi a busca da
iluminação espiritual e faleceu aos oitenta anos de idade, em 483 a. C.,
Mais
tarde, no auge do domínio romano sobre outros povos, entre os judeus, nasce
Jesus Cristo, que segundo o evangelho, falava sobre o Reino de Deus, um lugar
de justiça, paz e alegria no espírito:
O Reino
de Deus, que não terá fim e que já está no meio de nós (Lc 17, 21), é justiça,
paz e alegria no Espírito Santo (Rm 14,17); é o fim último ao qual Deus nos
chama;[10] é obra do Espírito Santo;[11] e é também um império eterno que
jamais passará e…jamais será destruído (Dn 7,14).[ii]
E no século XVI, temos o homem que ao buscar a
si mesmo, passa a incorporar papéis desejados, isto é, transforma-se em ator. E
o ator substitui o homem e Deus. “A Natureza oposta ao Homem substitui Deus
englobando em seu pensamento o universo. O Homem se considera a si mesmo, de
bom grado, como um ator no teatro do mundo” (FRANCASTEL,
1983, p.244).
Dessa
maneira ao criar o cenário e ao escrever sobre o papel ideal do ator, este
último, tem a possibilidade de interpretar personagens perfeitos no palco do
mundo, assim como, transmitir essa experiência para outras gerações: “a influência
da compreensão ritual e eficaz do mundo, assim como a da interpretação racional
do universo e que só se explica pela flexível evolução das várias gerações” (FRANCASTEL, 1983,p.245).
O
pensamento moderno fez surgir o ator no lugar do homem natural, e juntamente
com ele, toda uma nova linguagem, sendo esta, desenvolvida através do espirito
científico moderno, ou seja, exigências dos novos cenários do maravilhoso, dos
espetáculos que encantavam as pessoas. Estas cenas teatrais materializam-se
também nas concepções ideais projetadas para o cotidiano.
“o
progresso das novas linguagens reflete essa marcha hesitante do pensamento
moderno .... abre caminho as novas experiências ... nascidas do espirito
cientifico moderno, as tradições maravilhosas do espetáculo popular. Ele
materializa então, no par cena-sala solidários, a concepção ideal do microcosmo
– macrocosmo que constitui o fundo da filosofia dos tempos modernos... o século
XVI aparece como um período em que as duas tendências se confirmam sem se
defrontar nem se fundir. (FRANCASTEL, 1983, p.245).
A
partir da cena teatral apresentada pela imaginação do ator, que nasce novos
pensamentos na modernidade. Eles são frutos da concepção e do entendimento do
indivíduo. “Não é a forma que cria o pensamento nem a expressão, mas é o
pensamento, expressão do conteúdo social comum de uma época, que cria a forma” (FRANCASTEL,
1983 p.249).
Portanto,
segundo Francastel, é pela presença da coisa vista que se explicam as imagens
construídas na modernidade. Elas representam “horizontes vividos”, isto é,
alargamentos de contextos materiais, culturais e intelectuais da humanidade,
espécie de utopia estética que cria imensos horizontes positivos.
Cerca de
1480 uma mudança radical intervém nos ritos sociais ao mesmo tempo que no
sistema figurativo do século. Inspirado até então pela visão dos espetáculos populares,
os artistas transpõem o mais das vezes cenas vistas na rua durante verdadeiras
liturgias civis mais importantes que os mistérios – que constituem apenas um
momento destes e que utilizam aliás igualmente um vasto material de objetos e
de emblemas emprestados aos últimos séculos da Idade Média. Esses vastos
“espetáculos não-teatrais”, que culminam cortejos e em justas, marcam o ritmo
paralelo da vida humana e dos ciclos da natureza; eles pontuam a vida popular
das cidades (FRANCASTEL, 1983 p.284).
A
mudança do sistema figurativo entre o século XV para o século XVI está no
contexto da visão dos espetáculos de mistérios populares que alimentavam as
imaginações para as observações de artistas, que ao acompanhar os
acontecimentos de rua durante certos rituais ou liturgias, criava em paralelo
aos mistérios, alguns recortes, que se transformaram em emblemas, dando origem
a um ritmo paralelo na vida humana.
De
acordo com Francastel, esta mudança começa ocorrer junto a poesia amorosa, pois
“seus versos estão intimamente entremeados ao tecido de sua própria aventura
sentimental” (FRANCASTEL, 1983, p.287). Trata-se da incorporação ao imaginário
do individuo pela trama que está a sua volta, ou seja, algo imaginado ou
sentido que pode renovar a vida.
Assim
como um cheiro, um sabor ou um perfume, ambos capazes de anunciar algo que
nossa imaginação tem como buscar via memória, possíveis representações
semelhantes e aproximadas, pelas quais, podem -se criar ou renovar a vida: “Há
portanto no renovamento da vida pelo Amor
como que um presságio daquilo que nos espera depois de nosso fim e eis
porque os cantos de amor são dignos de toda atenção; eles são a prefiguração de
destino da alma humana” (FRANCASTEL, 1983, p.287).
Esta
atitude humana pode atenuar segundo Francastel “a lei dos ciclos eternos” de
vida e morte, pois, o perfume do além pode amenizar o desespero do destino por
meio da contemplação do maravilhoso. É dessa maneira que a vida tem como
triunfar sobre a morte, ela se antecipa o encontro com o deslumbrante, evoca a
ideia de um outro mundo.
Para
Francastel, quando nos encantamos por uma imagem ou “pela força efetiva de um
objeto amado” este age à maneira das forças da natureza que regem o universo:
“a amante faz reflorir a alma do amante como a primavera faz reflorir a terra”
(FRANCASTEL, 1983, p.290).
Neste
contexto do amor do final do século XV, Francastel retoma o pensamento dos
platônicos que dizia:” o espírito, os olhos, e os ouvidos podem nos guiar, os
outros sentidos apenas são
incuravelmente vis” (FRANCASTEL, 1983, p.291). Dessa maneira, algumas imagens
podem transportar desde a alegoria do coração de um artista que lhe produziu
até o gosto de toda uma sociedade.
Referências
bibliográficas
FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. São Paulo:
Perspectiva, 1983