Texto de Slavoj Zizek
Nosso
terceiro exemplo vem da “vida real” em sua forma mais brutal: os atos de
violência (tortura e assassinato nas comunidades de garimpo na bacia do rio
Amazonas. Estamos falando de comunidades isoladas em que é possível observar a
lógica das relações de poder e da erupção da violência em condições de
laboratório. Por assim dizer. Essas comunidades consistem numa multiplicidade dispersa de garimpeiros
individuais; embora nominalmente sejam livres empreendedores, todos dependem do
mercado local, que monopoliza o comércio na área. Os mercadores lhes vendem
comida, ferramentas e outros utensílios; e compram deles suas pepitas, todos
têm dívidas altíssimas com os mercadores, que não as querem liquidadas, pois
todo o poder que exercem está baseado na dívida permanente dos consumidores. As
relações sociais nessas comunidades são reguladas por uma dupla ficção, ou
melhor, pela coexistência sobredeterminada e paradoxal de duas ficções incompatíveis.
De um lado, temos a ficção da troca igualitária, como se o garimpeiro e o
mercador fossem dois sujeitos que se relacionam no mercado em termos iguais. O anverso
disso é a imagem do mercador monopolista como Mestre patriarcal que cuida de
seus consumidores, sendo estes quem pagam aquele por esse cuidado paternal, com
amor e respeito. Por trás dessa ficção contraditória existe, é claro, a realidade
do monopólio dos mercadores, de sua exploração brutal. A violência que eclode
nessas comunidades de tempos em tempos se dirige principalmente contra quem
representa uma ameaça ao frágil equilíbrio dessa ficção dupla: os alvos
preferidos dos mercenários do mercado não são as pessoas incapazes de pagar
suas dividas, mas sim quem tenta sair da região
ainda endividado, especialmente quem teve êxito e agora tem condições de
liquidar sua divida – essas pessoas são as que mais ameaçam o poder dos
mercadores. (uma situação típica é um mercador mandar chamar um garimpeiro cuja
divida é muito alta e lhe propor cortar sua divida pela metade se ele atear
fogo na casa de outro garimpeiro bem-sucedido.) o que temos aqui é um caso
exemplar de como o desejo se inscreve na ambiguidade (....) o desejo oficial do
“mercador” é que seus clientes paguem suas dívidas o mais rápido possível – ele
os acossa por estarem atrasados no
pagamento -, mas seu verdadeiro temor é que os endividados lhe paguem, isto é, seu verdadeiro
desejo é que todos continuem endividados indefinidamente.
Fonte:
Slavoj Zizek, Interrrogando o Real p. 248 -249 . Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 1ª Ed. 2017.